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Entre noz-moscada e pimenta

Onde: Curitiba • 04 de Fevereiro - 2021 |

 Julie Fank usa a arte, a escrita e o afeto para construir pontes e desobstruir livros

Vou começar de novo porque já escrevi essa coluna uma vez. Mas depois de fazer um texto bem construído - a meu entender, claro, cabem objeções - resolvi que não seria adequado falar sobre escrita criativa e outras artes de forma conservadora. Aliás, nada menos conservador do que a esc. escola de escrita - inventada e comandada pela Julie Fank, escritora, artista, professora e detentora de tantos afetos quanto reconhecimentos públicos de coragem. É, porque fundar um lugar para criativos é uma missão quase suicida. Já se vão seis anos e todo mundo que passa por lá quer ficar mais, engata um outro curso, uma amizade para a vida, empresta um livro para demorar a devolver, entra na live de terça ou usa filtro exclusivo da escola só para manter o vínculo. É um espaço para se demorar.

 

A Julie é taurina, portanto se você quer que ela dê atenção é só mandar comida junto com o texto. Há pessoas que tentaram isso em casa e já fiquei sabendo que dá muito certo - eu ainda não o fiz e, portanto, meus textos estão lá empacados na caixa postal dela. Ao invés disso, enviei uma carta - sim, pelo correio e datilografada. Mas ela perdeu antes de responder. Pelo menos ela leu, eu acho. Bom, mas estou aqui para falar sobre literatura, sobre o quanto a escrita se relaciona com a arquitetura e o espaço. A Julie me contou que os pais dela se conheceram na faculdade de Matemática e que matemática tem tudo a ver com a origem da escrita - que aconteceu há cinco mil anos, em uruk, na Mesopotâmia, com os contadores de mercadorias. Depois, muito tempo depois aliás, já no tempo das grandes navegações, alguém escreveu algo como “cinco quilos de pimenta, oito quilos de noz moscada e o dia está bonito hoje”. Pois taí o começo dos diários. Não teve nada de idealismo, foi bem pragmático mesmo esse começo.

 

Os pais da Julie não terminaram a faculdade de Matemática - foram para engenharia e artes - mas lá em Cascavel, cidade paranaense fundada na década de 60 que mantém construções do movimento brutalista, ela aprendeu a resolver desafios intelectuais, a jogar xadrez e a apreciar livros-objeto. Sabem das coisas esses Fank.

 

Praticamente todos os escritores constroem espaços, sejam eles físicos ou não. Você já pensou que uma vírgula, um espaço maior entre parágrafos, um vazio no meio da página ou mesmo margens fora do padrão são pausas ou silêncios intencionais propostos pelo autor? Pois bem, a Julie diz que existe a espacialidade da literatura e a arquitetura do texto - chamado arquitexto. Eu não vou explicar isso aqui porque não caberia no limite de caracteres dessa coluna e também não sou especialista no assunto. Mas agora que vocês já sabem que isso existe podem fazer uma busca e descobrir outras coisas interessantes. Dizem que interessante é uma palavra proibida - na verdade quem disse isso foi o Capitão Fantástico, no filme, e eu concordei com ele.

 

Porque interessante não diz nada, apenas que você se interessa por aquilo. Portanto, vou alterar para “coisas que ampliam nossa visão de mundo e destravam ou incrementam a nossa escrita”. Melhor, né? E todo mundo pode escrever, não precisa ser escritor. Nas festas da esc. - antes presenciais e agora virtuais - vez por outra tem um vinho e mensagens em garrafas. A frase mais usada é “Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não”, do Saramago.

 

Falando especificamente das cidades, na literatura elas são todas inventadas. Conclusão da Julie quando eu comentei, na entrevista com ela, que Macondo realmente existia - e resiste - quando a descobrimos em Cem anos de solidão, do Gabriel Garcia Marquez; e que a são Paulo de Não verás País Nenhum, do
Ignácio de loyola Brandão, é quase real hoje – embora tenha sido descrita como ficção nos anos 80. O fato é que todas, sendo reais ou imaginadas, são únicas. A Curitiba da luci Colin não é a mesma daquela do Dalton Trevisan.

 

Portanto, podem existir muitas cidades em uma. Não é fantástico pensar que cada um tem uma cidade própria? e que uma só cidade é muitas ao mesmo tempo? Por falar em tempo e em espaço, ambos são objetos de estudo da Julie e assim ficou mais fácil construir esse texto. Meu tempo-espaço acabou e para presentear quem chegou até aqui vai uma lista incrível de indicações da Julie.
Satisfação garantida regada ao seu tempero favorito.

 

Indicações de livros sobre cidades e/ou espaço

Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino
Tentativa de esgotamento de um lugar parisiense, Georges Perec
Anseios crípticos, Paulo leminski
Um teto todo seu, Virgínia Woolf
Se um viajante numa noite de inverno, Ítalo Calvino
Eles eram muito cavalos, Luiz Rufatto
O jogo da amarelinha, Julio Cortázar
A cidade sitiada, Clarice Lispector
Paris é uma festa, Ernest Hemingway
A cidade solitária, Olivia Laing
Quarto de Despejo, Maria Carolina de Jesus
Adress book, Sophie Calle
Cidademanequim, André Volpato